quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

POR QUEM OS PODEROSOS OLHAM?


POR QUEM OS PODEROSOS OLHAM?

Juventude e Segurança Pública: uma questão de classe social?

       Santa Maria chora por seus filhos! E eu, que choro em consonância com ela, lembrei-me de um texto de John Donne, poeta inglês do século XVII, “Por quem os sinos dobram?”, ou, talvez, “Nenhum homem é uma ilha”. Quando se enterra um homem, diz o poeta, “esta ação também me diz respeito; toda a humanidade provém de um autor, e forma um único livro; quando um homem morre, um capítulo não é arrancado do livro, mas traduzido para uma linguagem melhor, e cada capítulo deve ser assim traduzido; Deus emprega inúmeros tradutores; algumas peças são traduzidas pela idade, algumas pela doença, algumas pela guerra, algumas pela justiça, mas a mão de Deus está em cada tradução, e sua mão reunirá outra vez todas as nossas folhas espalhadas formando a biblioteca onde cada livro deverá permanecer aberto aos outros, da mesma maneira que, quando o sino toca chamando para o sermão, não chama apenas o pregador, mas também toda a congregação; nos chama a todos. Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme; a morte de qualquer semelhante deixa-me diminuído, porque eu estou integrado no gênero humano, e por isso, nunca mandes saber por quem os sinos dobram; os sinos dobram por ti”.  

Diante da dor do outro, como não me sentir diminuída também? Como não chorar junto? Como não me revoltar e, inconsolável, querer, agora que a tragédia se fez carne, e nome, 235 nomes de jovens mortos até o momento desse texto, mais a dor as famílias desses jovens, dos amigos, dos namorados e namoradas, do país inteiro, sim, nós brasileiros, todos, juntos, solidários, queremos agora ser cidadãos. Queremos participar das fiscalizações das boates da nossa cidade, queremos que o poder público ofereça mais segurança aos nossos jovens.

Opa, segurança, jovens! Mas de quais jovens estamos falando?

Recentemente, em uma avaliação do governo do estado São Paulo aplicada nas escolas públicas para jovens terminando o terceiro ano do Ensino Médio, também foi proposta, pelo próprio governo, uma questão parecida, envolvendo jovem e segurança pública. Só que para o governo, os jovens de que ele tratava, quase todos pobres, quase todos negros, quase todos da periferia, quase todos sem perspectiva alguma de continuar os seus estudos e entrar numa Universidade Pública, ou festejar com amigos e parentes em uma casa noturna a nova etapa da sua vida, esses jovens, semelhantes aos outros apenas no gênero humano, é que ofereciam perigo à segurança do Brasil e deveriam, cada vez mais cedo, cada vez mais jovens, 18 anos é muito, 16, talvez 12, quem sabe com 7 ou 8 anos já deveriam ser considerados responsáveis para poder apodrecer nas prisões de nosso sistema penitenciário.

Eu, que também sou mãe, coloco-me no lugar, todos os dias, também dessas mães quase sempre negras, quase sempre pobres, quase sempre com pouca escolaridade, que perde um filho jovem todo dia para o crime, as drogas ou os conflitos armados com traficantes e com a polícia. Quantos serão? Ninguém conta!

Verdade, eles não morrem todos ao mesmo tempo, o que seria, sem dúvida, muito mais dramático. Mas são muitos também. E a morte deles não acontece uma única vez e nem em um único lugar. Acontece sempre e se espalha por todas as cidades desse nosso país. Mães choram o tempo todo pela vida ceifada antes da hora de seus filhos. Isso aqui é tão comum! Ontem, hoje, agora, no momento em que você lê esse texto, jovens morrem por falta de uma política pública de segurança, por falta de uma política pública de prevenção a qualquer dano que possa ir contra a sua integridade física.

Que as 235 almas jovens de Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, sem classe e sem cor agora, sejam um farol a iluminar nossos dirigentes para a questão da segurança pública de nossos jovens. De todos eles, sem distinção!



O número de jovens vítimas de homicídios no Espírito Santo chegou a 391 de janeiro a maio deste ano, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança. Levantamento do Núcleo de Estudos sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) apontam que 77% são negros.

Esses dados foram apresentados na noite desta quinta-feira (30) no Plenário Dirceu Cardoso da Assembleia Legislativa (Ales), em sessão especial proposta pelo deputado Claudio Vereza (PT) para debater a “Juventude em Marcha Contra a Violência e Extermínio”. A intenção do parlamentar foi inserir o jovem na discussão, e o Plenário ficou cheio deles.

O presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Gilmar Ferreira de Oliveira, opinou que as políticas voltadas para os jovens não podem ter a “lógica policialesca”, mas serem voltadas para a questão dos direitos humanos e da cidadania. Segundo ele, os jovens querem ser ouvidos para opinar sobre as políticas que querem.

A coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos da Ufes, professora Eugênia Raizer, foi a palestrante da noite. Mostrou estudo desenvolvido por ela e pela estudante de Serviço Social da Ufes, membro do Núcleo, Silvana Ribeiro da Silva. E começou tentando definir o que é um jovem.

Pensadores tentaram definir o termo juventude, e um brasileiro dividiu em categorias: a juventude dourada (classe alta ou média alta, de cor branca ou amarela), a trabalhadora (50% do total de 15 a 24 anos), os pobres, os vulneráveis (meninos de rua ou de classes baixas que vivem processo de exclusão social nas grandes cidades) e os infratores (pertence a várias camadas sociais e etnias).

A Política Nacional da Juventude considera jovem aquele que tem entre 15 e 29 anos, com subdivisões. Eugênia Raizer mostrou dados que indicam o crescimento do número de homicídios envolvendo jovens no Espírito Santo. Somavam 30,3% em 1998 e chegaram a 38,7% em 2008. Houve crescimento da média nacional, mas o Estado está acima dessa média.

A professora observou que no Espírito Santo o crescimento econômico não se reflete em benefícios sociais, as riquezas não implicam na superação das desigualdades sociais e o mapa da violência segue o das desigualdades. Mostrou um mapa de Vitória onde pontos vermelhos marcavam locais de homicídios em 2008: mais concentrados nas regiões carentes, quase inexistentes nos bairros abastados.

 O Estado ocupa o terceiro lugar no triste ranking dos números de homicídios de jovens no Brasil. Em 2010, na Região Metropolitana da Grande Vitória, os municípios de Serra, Cariacica e Vila Velha tinham o maior número de ocorrências, seguidos de perto por Vitória. Em Viana, Guarapari e Fundão, o número foi bem menor.

De janeiro a maio deste ano, dos 735 assassinatos, 391 foram de jovens, números concentrados na faixa dos 18 aos 24 anos. Somente em abril foram 91 homicídios, cerca de três jovens mortos por dia, lamentou Eugênia Raizer. O número de jovens negros assassinatos gira em torno de 77% do total; 9% são brancos e em 14% dos casos a cor não é informada.

Hildete Emanuelle Nogueira de Souza, membro da coordenação da Campanha Nacional contra a Violência e o Extermínio de Jovens, assegurou que a violência não começa com o disparo de um tiro, mas muito antes, num histórico de exclusão, de racismo, de violência nas escolas, “que ninguém quer falar, ninguém quer debater”. Começa dentro de uma sociedade que vive com medo e “coisifica” o ser humano.

As Pastorais da Juventude do Brasil, ligadas a Igreja Católica, desencadearam a campanha, lembrou, acrescentando que é preciso ultrapassar os muros da igreja e buscar parcerias com movimentos sociais e casas legislativas. Eventos como a sessão desta quinta, que atraiu o secretário municipal de Direitos Humanos de Vitória, João José Barbosa Sana, e a secretária municipal de Assistência Social, Ana Petronetto, bem como o membro da coordenação estadual da campanha, José Luiz Augusto Bedoni.

Fejunes lamenta ausência do Governo na Sessão. O Coordenador do Fórum Estadual de Juventude Negra – Fejunes, Luiz Inácio, criticou a ausência de representantes do Governo no debate. “Infelizmente essa ausência não é pontual, ela se dá em diversos momentos. Existe uma resistência muito grande das autoridades em dialogar sobre esse tema. Enquanto isso dezenas de jovens são exterminados em nosso estado”, enfatizou.

Luiz Inácio ainda cobrou retorno da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social que, segundo ele, até o momento não convidou os articuladores da Campanha para uma nova rodada de conversa a respeito do projeto “Juventude pela Vida” proposto pelas organizações juvenis ao Governo e que visa o protagonismo da juventude no enfrentamento da violência.

“Já faz mais de dois meses que aguardamos retorno da SESP para dialogarmos sobre a implementação de um projeto que visa o envolvimento da juventude no enfrentamento da violência”, disparou.

Os secretários Rodrigo Coelho, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Assistência Social, e Henrique Herkenhoff, da Secretaria Estadual de Segurança Pública foram convidados, mas não comparecerem.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

DA SABEDORIA POÉTICA: A METÁFORA


Giambattista Vico,  Princípios de (uma) Ciência Nova (acerca da natureza comum das nações), Seleção, tradução e notas do Prof. Antonio Lázaro de Almeida Prado.

 

 

DA SABEDORIA POÉTICA

Corolários a respeito dos tropos, dos monstros mitológicos e das metamorfoses poéticas

 

1.

            Todos os tropos são corolários desta lógica poética. Deles, a mais luminosa e, por mais luminosa, a mais necessária e a mais espessa é a metáfora, que tanto mais louvada se faz quanto às coisas insensatas ela dá sentido e paixão. (...) Pois os primeiros poetas deram aos corpos o grau entitativo de substâncias animadas, capacitadas, no entanto, apenas de quanto lhos pudessem conferir, isto é, de sentido e paixão, e assim deles (sentido e paixão) se fizeram as fábulas. De modo que cada metáfora, assim constituída, vem a ser uma fabulazinha minúscula. Dá-se-nos, pois, esta crítica a respeito do tempo em que nasceram eles nas línguas: que todas as metáforas assumidas com similitudes tomadas aos corpos, de forma a significarem trabalhos de mentes abstratas devem ser dos tempos nos quais começaram a desbastarem-se as filosofias[1]. Demonstramo-lo a partir de um fato: que em toda língua os termos indispensáveis para as artes cultas e para as ciências arcanas têm suas origens aldeãs (contadinesche).

            Isto é digno de nota: que em todas as línguas a maior parte das expressões a respeito de coisas efetuam-se mediante translações do corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos humanos e das humanas paixões. Assim, cabeça, por cimo ou princípio; fronte, espáduas, adiante e atrás; olhos das videiras ou os que chamam os primeiros lumes penetrados nas cascas; boca, toda e qualquer abertura; lábios, bordas de um vaso; dente do arado, do rastelo, da serra, do pente; barbas, as raízes; língua do mar; face ou foz dos rios ou montes;  garganta de terra; braço do rio; mão, por pequeno número; seio do mar, isto é, golfo; flancos ou lados, os cantos; costas do mar; coração por meio (que os latinos chamam de umbilicus); perna ou de países; e por confim; planta por base ou fundamento; carne e ossos dos frutos; veio de água, pedra ou mina; sangue da videira, o vinho; vísceras da terra; ri o mar, o céu; sopra o vento; murmura a onda; geme um corpo sob um grande peso; e os campônios do lácio diziam sitire agros, laborare fructus, luxuriari segetes[2]. Já os nossos camponeses dizem: “amarem-se as plantas, endoidecerem as vides, lacrimejarem os freixos”. E há inumeráveis expressões similares que se podem recolher em todas as línguas.

            Isto acompanha o que referimos naquela Dignidade: que o homem ignorante se faz regra do universo, assim como os exemplos oferecidos ele, a partir de si próprio, erigiu um mundo inteiro. Porque, assim como a metafísica racional ensina que homo intelligendo fit omnia, assim esta metafísica fantástica comprova que homo non intelligendo fit omnia. E talvez mais razoável será dizer isto do que aquilo, pois que o homem com o entender desenvolve a sua mente e compreendo essas coisas, mas com o não entender ele se faz essas coisas, e, com o transformar-se nelas, torna-se elas próprias.

 

2.

            Por força dessa mesma lógica, parto da metafísica, os primeiros poetas devem ter dado às coisas os nomes, a partir das ideias mais particulares e sensíveis. Eis as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque. Daí porque a metonímia dos autores pelas obras nasceu de os autores serem mais nomeados do que as obras; e o dos sujeitos pelas suas formas e adjuntos nasceu porque, como o demonstramos nas Dignidades, não sabiam abstrair dos sujeitos as formas e as qualidades dos mesmos. Certamente a das causas pelos efeitos correspondem a minúsculas fábulas, mediante as quais imaginaram-se serem mulheres vestidas dos seus efeitos, sendo, por isso mesmo, feia a Pobreza, triste a Velhice e pálida a Morte.

 

3.

            A sinédoque passou para transporte depois, como o elevarem-se os particulares a universais ou a comporem-se as partes com as demais com as quais compunham as suas integralidades. “Mortais” chamaram-se propriamente, ao início, tão-somente os homens, únicos a sentirem-se mortais. O “cabeça”, por “homem” ou pela “pessoa”, tão frequente no latim vulgar, porque dentro dos bosques só viam de longe a cabeça do homem. E a palavra “homem” é vocábulo abstrato, que compreende, como em um gênero filosófico, o corpo e todas as partes do corpo, a mente e todas as faculdades da mente, o espírito e todos os hábitos do espírito.

            Assim deve ter sucedido que tignum e culmen com toda propriedade significaram “travessinha” e “palha” no tempo das palhoças. Depois, com o polimento das cidades, significaram toda a matéria e o acabamento dos edifícios. Assim tectum pela “casa” toda, porque nos primeiros tempos uma cobertura valia por uma casa. Assim, puppis pela “nave”, porque, sendo elevada, será a primeira a ser divisada pelos que estão em terra; como nos tempos bárbaros recorrentes[3] se disse uma “vela” por uma “nave”. Assim, mucro[4] por “espada”, porque esta palavra abstrata, como um gênero, compreende pomo, talhe e ponta, sendo que eles sentiram pavor foi mesmo pelas pontas... Assim, a matéria pelo todo dela constituído, como “ferro” pela “espada”, pois não sabiam abstrair as formas da matéria[5]. Aquele nastro de sinédoque e de metonímia:

Tertia messis erat[6]

nasceu, sem dúvida, de uma necessidade natural, porque devem ter decorrido mais de mil anos para surgir entre as nações este vocábulo astronômico “ano”; assim como na zona rural florentina ainda dizem abbiamo tante volte mietuto[7] para significar “tantos anos”. E aquele grupo de duas sinédoques e de uma metonímia:

Post alíquota, mea regna videns, mirabor, artistas[8]

em muito acusa a infelicidade dos primeiros tempos aldeões, nos quais, para expressar-se diziam “tantas espigas”, que são particulares mais das messes, para indicar “tantos anos”, e, porque a expressão era muito infeliz, os gramáticos ali supuseram muito de artístico.

 

4.

            A ironia certamente não pode começar senão nos tempos da reflexão, porque ela forma-se a partir do falso, em virtude de uma reflexão que assume máscara de verdade. Aqui nasce um grande princípio de coisas humanas, que confirma a origem da poesia aqui inventada: que os primeiros homens da gentilidade tendo sido tão simplórios quanto as crianças, que por natureza são verazes, as primeiras fábulas não puderam fingir nada de falso. E terão sido, necessariamente, como acima as definimos, narrativas verdadeiras.

 

5.

            Por todas essas razões se demonstrou que todos os tropos (que ao todo se reduzem a estes quatro)[9], até hoje tidos em conta de engenhosíssimo inventos dos escritores, corresponderam a necessaríssimos modos de expressarem-se todas as primeiras nações poéticas, guardando, em sua origem, toda a sua nativa propriedade. Depois, no entanto, com o progressivo desenvolver-se da mente humana, inventaram-se as palavras que significam formas abstratas, ou gêneros que compreendiam as suas espécies, ou que compunham com suas partes as integralidades, passando tais falares das nações primitivas a transportes. E aqui começam a esboroar-se aqueles dois erros comuns dos gramáticos: ser próprio o falar dos prosadores, e, improprio o dos poetas; que primeiro existiu o falar em prosa, e, depois o do verso.



[1] Nota Flora que só então elas se converteram em metáforas, pois, antes, nos tempos poéticos, constituíam um só corpo com a poesia, já que não nascera ainda a abstração filosófica. (N. do T.)
[2]
[3] Isto é, a Idade Média. Recorde-se que Vico apregoa uma reiteração cíclica dos tempos históricos. E sua teoria dos corsi e ricorsi. (N. do T.)
[4] Ponta, extremidade pontuda.
[5] Sua continuidade.
[6] Era já tempo da terceira ceifa. (N. do T.)
[7] Colhemos já tantas vezes. (N. do T.)
[8] Vergílio, Bucolica, I, 69, na forma interrogativa, diz Melibeu: Poderei ainda um dia rever meus campos... E, ao rever aquilo que foi meu domínio, será que não irei deparar, com doloroso espanto, apenas algumas espigas?
[9] Metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. (N. do T.)