Da série "O que estou lendo agora?" ou "DOS CUIDADOS DE SI - porque uma pessoa é o que come o seu corpo, mas também o que devora a sua alma -", quero compartilhar, como um prato forte e exótico, desses de matar a fome de algum jejum estranho, a leitura de YORAM KANIUK, Adam filho de cão; tradução de Nancy Rozenchan, SP: Ed. Globo, 2003
A tópica da loucura acompanha essa insana que vos fala desde muito jovem. Já não me lembro quando li O Alienista, de Machado de Assis, e aquele doutor Simão Bacamarte entrou pelos quatro contos do meu corpo. Contos mesmo, não é um erro ortográfico, senão seria uma solução. E eu não quero explicar nada. Já temos explicações demais à nossa volta. Racionalizar em tempos como os nossos, já percebeu o cinema, é perda de tempo. Não vale um nihil! Todos queremos é fantasia. A fantasia de não ser homem. A delícia sem culpa, como se permite a um deus, de ser super, hiper, mega, plus, ultra ex-man. Adam Stein é um desses. Entrou na minha vida essa semana, a última de um fevereiro chuvoso, com tempestades de vento, trovoadas e raios, muitos raios, nessa cidade com nome de santo, nem pescador, nem cristão, um perseguidor atingido. Se um raio me atingir e me der super poderes deixarei de perseguir o que quer que seja e serei o que tiver que ser. Estamos no ano de 2013, do século XXI, e não há nada mais bizarro do que ser brasileira. Mas, hoje, Adam Stein está junto comigo nessa empreitada. Eu começo a vislumbrar quem eu sou. A descrição que me fez dele o Dr Gross, discípulo de Freud, vale por uma apresentação. Vou citá-la e fim de papo por hora:
"Tudo o que Adam Stein faz causa-lhes espanto. Ele sabe disso e faz tudo a fim de manter a fama. Dr Gross, que agora o aguarda no gabinete, chama Adam de "gênio", e dr. Gross não usa as palavras em vão. Pois Adam Stein foi privilegiado com talentos incomuns dos quais ele absolutamente não se vangloria. Sua beleza e riqueza, por exemplo, são-lhe mais importantes. O fato de, após a guerra, Herr Kommandant ter-lhe devolvido todo o seu dinheiro e tê-lo conduzido de volta a Berlim era, a seu ver, mais significativo do que o espantodo dr. Gross, diretor do Instituto de Repouso e Terapia, sobre sua cpacidade de ler livros fechados, conversar com pessoas que se encontravam a uma grande distancia ou saber a história de objetos pelo tato.
Poucos anos atrás, antes da fundação do Instituto da sra. Zisling, quando o hospital ainda se localizava em Jafa, e fora trazido peloa primeira vez ao dr. Gross, Adam reparara num belo sabre árabe pendurado na parede, junto ao retrato do dr. Freud numa moldura dourada. O lindo sabre, feito de metal prateado e enfeitado de borlas coloridas, excitou-o pela aparência nobre, selvagem, que lembrava deserto, e ele estendeu a mão e começou a apalpá-lo.
O dr. Gross jamais esqueceria ter permanecido sentado, observando Adam cujos olhos estavam fechados e parecia perturbado pelas forças ocultas desconhecidas, invisíveis, incompreensíveis que penetravam no espaço. Adam apalpou a arma e suas mãos como que contavam a história despejando pela boca as palavras e os nomes sem parar: Uja al-Khafir, El-Arish, uma rua numa cidade branca, praia, uma mesquita com um café ao lado e subitamente um tumulto, barulho, e dois árabes brigando, e de repente Adam grita dirigindo-se ao dr. Gross: "O dono do sabre matou o homem errado!" O médico empalideceu, respirou fundo e esperou, e Adam passeou pelo Oriente e chegou a Aden, ao principado do Golfo Pérsico, a Birodjan, às montanhas prateadas, às montanhas da própria Pérsia. De repente, gritou em inglês: "O sultão está morto, viva o rei, Sua Majestade George V"! O pai do dr. Gross servira no exército turco e em 1915 alistara-se na polícia britânica, chegara ao posto de oficial e passara por todos aqueles lugares.
O dr. Gross sorriu prazerosamente. De repente Adam pára, range os dentes, e seus olhos passeiam em volta. O que aconteceu? Alguma coisa o bloqueava, uma palavra estava presa em sua garganta e recusava-se a sair. Era uma provação, causa-lhe sofrimento até que consegue: "Ruth. Não sei por quê, mas o nome que desejo pronunciar é Ruth"."O que aconteceu, Adam?" Arrancado dos desertos fanáticos o dr. Gross voltou ao gabinete, e o retrato do dr. Freud devolveu-lhe a frieza perene, que não compactuava com o universo primitivo dissimulado na mente dos pacientes: "O que foi que aconteceu, Adam?"
"Não sei", disse Adam. "Ruth era o nome da minha filha. Vim procurá-la aqui, você sabe, não? Foi a ela que eu traí. Mas este sabre é seu e o que é que tem a ver com a minha filha?" O dr. Gross não compreende. Está sedento por aquele rio forte e tempestuoso que jorra do coração de Adam e lhe transmite uma informação antiga e gloriosa. Não, aparentemente não há nenhuma relação. Quem foi Ruth? O dr. Gross rebusca o pensamento e não descobre. Mais tarde vem a saber pela mãe que o pai, antes de se casar com ela, tinha sido casado com uma inglesa, a srta. Jeanne Parker, que viera para Israel com uma delegação de arqueólogos ingleses, fizeram escavações perto de Jenin, apaixonara-se pelo jovem Gross e depois se casara com ele. Os anciões da cidade chamavam-na Ruth, em homenagem a Ruth, a moabita, e, pelas costas, irados, meneavam as cabeças dizendo: "Gross alistou-se no exército turco, passou a usar um barrete turco e casou-se com uma mulher não-judia." Ela cansou-se dos murmúrios, fugiu para Londres e, então, Gross pai casou-se com quem dera à luz o dr. Gross. O sabre, contou-lhe sua mãe com os olhos vermelhos de saudades e da ferida que nunca cicatrizara, fora presente daquela Ruth, a não-judia."
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O país do futebol tem que ser também o país da educação1