segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

DA SABEDORIA POÉTICA: A METÁFORA


Giambattista Vico,  Princípios de (uma) Ciência Nova (acerca da natureza comum das nações), Seleção, tradução e notas do Prof. Antonio Lázaro de Almeida Prado.

 

 

DA SABEDORIA POÉTICA

Corolários a respeito dos tropos, dos monstros mitológicos e das metamorfoses poéticas

 

1.

            Todos os tropos são corolários desta lógica poética. Deles, a mais luminosa e, por mais luminosa, a mais necessária e a mais espessa é a metáfora, que tanto mais louvada se faz quanto às coisas insensatas ela dá sentido e paixão. (...) Pois os primeiros poetas deram aos corpos o grau entitativo de substâncias animadas, capacitadas, no entanto, apenas de quanto lhos pudessem conferir, isto é, de sentido e paixão, e assim deles (sentido e paixão) se fizeram as fábulas. De modo que cada metáfora, assim constituída, vem a ser uma fabulazinha minúscula. Dá-se-nos, pois, esta crítica a respeito do tempo em que nasceram eles nas línguas: que todas as metáforas assumidas com similitudes tomadas aos corpos, de forma a significarem trabalhos de mentes abstratas devem ser dos tempos nos quais começaram a desbastarem-se as filosofias[1]. Demonstramo-lo a partir de um fato: que em toda língua os termos indispensáveis para as artes cultas e para as ciências arcanas têm suas origens aldeãs (contadinesche).

            Isto é digno de nota: que em todas as línguas a maior parte das expressões a respeito de coisas efetuam-se mediante translações do corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos humanos e das humanas paixões. Assim, cabeça, por cimo ou princípio; fronte, espáduas, adiante e atrás; olhos das videiras ou os que chamam os primeiros lumes penetrados nas cascas; boca, toda e qualquer abertura; lábios, bordas de um vaso; dente do arado, do rastelo, da serra, do pente; barbas, as raízes; língua do mar; face ou foz dos rios ou montes;  garganta de terra; braço do rio; mão, por pequeno número; seio do mar, isto é, golfo; flancos ou lados, os cantos; costas do mar; coração por meio (que os latinos chamam de umbilicus); perna ou de países; e por confim; planta por base ou fundamento; carne e ossos dos frutos; veio de água, pedra ou mina; sangue da videira, o vinho; vísceras da terra; ri o mar, o céu; sopra o vento; murmura a onda; geme um corpo sob um grande peso; e os campônios do lácio diziam sitire agros, laborare fructus, luxuriari segetes[2]. Já os nossos camponeses dizem: “amarem-se as plantas, endoidecerem as vides, lacrimejarem os freixos”. E há inumeráveis expressões similares que se podem recolher em todas as línguas.

            Isto acompanha o que referimos naquela Dignidade: que o homem ignorante se faz regra do universo, assim como os exemplos oferecidos ele, a partir de si próprio, erigiu um mundo inteiro. Porque, assim como a metafísica racional ensina que homo intelligendo fit omnia, assim esta metafísica fantástica comprova que homo non intelligendo fit omnia. E talvez mais razoável será dizer isto do que aquilo, pois que o homem com o entender desenvolve a sua mente e compreendo essas coisas, mas com o não entender ele se faz essas coisas, e, com o transformar-se nelas, torna-se elas próprias.

 

2.

            Por força dessa mesma lógica, parto da metafísica, os primeiros poetas devem ter dado às coisas os nomes, a partir das ideias mais particulares e sensíveis. Eis as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque. Daí porque a metonímia dos autores pelas obras nasceu de os autores serem mais nomeados do que as obras; e o dos sujeitos pelas suas formas e adjuntos nasceu porque, como o demonstramos nas Dignidades, não sabiam abstrair dos sujeitos as formas e as qualidades dos mesmos. Certamente a das causas pelos efeitos correspondem a minúsculas fábulas, mediante as quais imaginaram-se serem mulheres vestidas dos seus efeitos, sendo, por isso mesmo, feia a Pobreza, triste a Velhice e pálida a Morte.

 

3.

            A sinédoque passou para transporte depois, como o elevarem-se os particulares a universais ou a comporem-se as partes com as demais com as quais compunham as suas integralidades. “Mortais” chamaram-se propriamente, ao início, tão-somente os homens, únicos a sentirem-se mortais. O “cabeça”, por “homem” ou pela “pessoa”, tão frequente no latim vulgar, porque dentro dos bosques só viam de longe a cabeça do homem. E a palavra “homem” é vocábulo abstrato, que compreende, como em um gênero filosófico, o corpo e todas as partes do corpo, a mente e todas as faculdades da mente, o espírito e todos os hábitos do espírito.

            Assim deve ter sucedido que tignum e culmen com toda propriedade significaram “travessinha” e “palha” no tempo das palhoças. Depois, com o polimento das cidades, significaram toda a matéria e o acabamento dos edifícios. Assim tectum pela “casa” toda, porque nos primeiros tempos uma cobertura valia por uma casa. Assim, puppis pela “nave”, porque, sendo elevada, será a primeira a ser divisada pelos que estão em terra; como nos tempos bárbaros recorrentes[3] se disse uma “vela” por uma “nave”. Assim, mucro[4] por “espada”, porque esta palavra abstrata, como um gênero, compreende pomo, talhe e ponta, sendo que eles sentiram pavor foi mesmo pelas pontas... Assim, a matéria pelo todo dela constituído, como “ferro” pela “espada”, pois não sabiam abstrair as formas da matéria[5]. Aquele nastro de sinédoque e de metonímia:

Tertia messis erat[6]

nasceu, sem dúvida, de uma necessidade natural, porque devem ter decorrido mais de mil anos para surgir entre as nações este vocábulo astronômico “ano”; assim como na zona rural florentina ainda dizem abbiamo tante volte mietuto[7] para significar “tantos anos”. E aquele grupo de duas sinédoques e de uma metonímia:

Post alíquota, mea regna videns, mirabor, artistas[8]

em muito acusa a infelicidade dos primeiros tempos aldeões, nos quais, para expressar-se diziam “tantas espigas”, que são particulares mais das messes, para indicar “tantos anos”, e, porque a expressão era muito infeliz, os gramáticos ali supuseram muito de artístico.

 

4.

            A ironia certamente não pode começar senão nos tempos da reflexão, porque ela forma-se a partir do falso, em virtude de uma reflexão que assume máscara de verdade. Aqui nasce um grande princípio de coisas humanas, que confirma a origem da poesia aqui inventada: que os primeiros homens da gentilidade tendo sido tão simplórios quanto as crianças, que por natureza são verazes, as primeiras fábulas não puderam fingir nada de falso. E terão sido, necessariamente, como acima as definimos, narrativas verdadeiras.

 

5.

            Por todas essas razões se demonstrou que todos os tropos (que ao todo se reduzem a estes quatro)[9], até hoje tidos em conta de engenhosíssimo inventos dos escritores, corresponderam a necessaríssimos modos de expressarem-se todas as primeiras nações poéticas, guardando, em sua origem, toda a sua nativa propriedade. Depois, no entanto, com o progressivo desenvolver-se da mente humana, inventaram-se as palavras que significam formas abstratas, ou gêneros que compreendiam as suas espécies, ou que compunham com suas partes as integralidades, passando tais falares das nações primitivas a transportes. E aqui começam a esboroar-se aqueles dois erros comuns dos gramáticos: ser próprio o falar dos prosadores, e, improprio o dos poetas; que primeiro existiu o falar em prosa, e, depois o do verso.



[1] Nota Flora que só então elas se converteram em metáforas, pois, antes, nos tempos poéticos, constituíam um só corpo com a poesia, já que não nascera ainda a abstração filosófica. (N. do T.)
[2]
[3] Isto é, a Idade Média. Recorde-se que Vico apregoa uma reiteração cíclica dos tempos históricos. E sua teoria dos corsi e ricorsi. (N. do T.)
[4] Ponta, extremidade pontuda.
[5] Sua continuidade.
[6] Era já tempo da terceira ceifa. (N. do T.)
[7] Colhemos já tantas vezes. (N. do T.)
[8] Vergílio, Bucolica, I, 69, na forma interrogativa, diz Melibeu: Poderei ainda um dia rever meus campos... E, ao rever aquilo que foi meu domínio, será que não irei deparar, com doloroso espanto, apenas algumas espigas?
[9] Metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. (N. do T.)