Giambattista
Vico, Princípios
de (uma) Ciência Nova (acerca da natureza comum das nações), Seleção,
tradução e notas do Prof. Antonio Lázaro de Almeida Prado.
DA
SABEDORIA POÉTICA
Corolários a respeito dos tropos, dos monstros
mitológicos e das metamorfoses
poéticas
1.
Todos os tropos são corolários desta lógica poética.
Deles, a mais luminosa e, por mais luminosa, a mais necessária e a mais espessa
é a metáfora, que tanto mais louvada
se faz quanto às coisas insensatas ela dá sentido e paixão. (...) Pois os
primeiros poetas deram aos corpos o grau entitativo de substâncias animadas,
capacitadas, no entanto, apenas de quanto lhos pudessem conferir, isto é, de
sentido e paixão, e assim deles (sentido e paixão) se fizeram as fábulas. De
modo que cada metáfora, assim constituída, vem a ser uma fabulazinha minúscula.
Dá-se-nos, pois, esta crítica a respeito do tempo em que nasceram eles nas
línguas: que todas as metáforas assumidas com similitudes tomadas aos corpos,
de forma a significarem trabalhos de mentes abstratas devem ser dos tempos nos
quais começaram a desbastarem-se as filosofias[1]. Demonstramo-lo
a partir de um fato: que em toda língua os termos indispensáveis para as artes cultas
e para as ciências arcanas têm suas origens aldeãs (contadinesche).
Isto é digno de nota: que em todas as línguas a maior
parte das expressões a respeito de coisas efetuam-se mediante translações do
corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos humanos e das humanas
paixões. Assim, cabeça, por cimo ou
princípio; fronte, espáduas, adiante e atrás; olhos das videiras ou os que chamam os
primeiros lumes penetrados nas cascas;
boca, toda e qualquer abertura; lábios,
bordas de um vaso; dente do arado, do
rastelo, da serra, do pente; barbas,
as raízes; língua do mar; face ou foz dos rios ou montes; garganta
de terra; braço do rio; mão, por pequeno número; seio do mar, isto é, golfo; flancos ou lados, os cantos; costas do mar; coração por meio (que os latinos chamam de umbilicus); perna ou pé de países; e pé por confim; planta por
base ou fundamento; carne e ossos dos frutos; veio de água, pedra ou mina; sangue
da videira, o vinho; vísceras da
terra; ri o mar, o céu; sopra o vento; murmura a onda; geme um corpo sob um grande peso; e os campônios
do lácio diziam sitire agros, laborare
fructus, luxuriari segetes[2].
Já os nossos camponeses dizem: “amarem-se as plantas, endoidecerem as vides,
lacrimejarem os freixos”. E há inumeráveis expressões similares que se podem
recolher em todas as línguas.
Isto acompanha o que referimos naquela Dignidade: que o homem ignorante se faz
regra do universo, assim como os exemplos oferecidos ele, a partir de si
próprio, erigiu um mundo inteiro. Porque, assim como a metafísica racional
ensina que homo intelligendo fit omnia,
assim esta metafísica fantástica comprova que homo non intelligendo fit omnia. E talvez mais razoável será dizer
isto do que aquilo, pois que o homem com o entender desenvolve a sua mente e
compreendo essas coisas, mas com o não entender ele se faz essas coisas, e, com
o transformar-se nelas, torna-se elas próprias.
2.
Por força dessa mesma lógica, parto da metafísica, os
primeiros poetas devem ter dado às coisas os nomes, a partir das ideias mais
particulares e sensíveis. Eis as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque.
Daí porque a metonímia dos autores pelas obras nasceu de os autores serem mais
nomeados do que as obras; e o dos sujeitos pelas suas formas e adjuntos nasceu
porque, como o demonstramos nas
Dignidades, não sabiam abstrair dos sujeitos as formas e as qualidades dos
mesmos. Certamente a das causas pelos efeitos correspondem a minúsculas
fábulas, mediante as quais imaginaram-se serem mulheres vestidas dos seus efeitos,
sendo, por isso mesmo, feia a Pobreza, triste a Velhice e pálida a Morte.
3.
A sinédoque
passou para transporte depois, como o
elevarem-se os particulares a universais ou a comporem-se as partes com as
demais com as quais compunham as suas integralidades. “Mortais” chamaram-se
propriamente, ao início, tão-somente os homens, únicos a sentirem-se mortais. O
“cabeça”, por “homem” ou pela “pessoa”, tão frequente no latim vulgar, porque
dentro dos bosques só viam de longe a cabeça do homem. E a palavra “homem” é
vocábulo abstrato, que compreende, como em um gênero filosófico, o corpo e
todas as partes do corpo, a mente e todas as faculdades da mente, o espírito e
todos os hábitos do espírito.
Assim deve ter sucedido que tignum e culmen com toda
propriedade significaram “travessinha” e “palha” no tempo das palhoças. Depois,
com o polimento das cidades, significaram toda a matéria e o acabamento dos
edifícios. Assim tectum pela “casa”
toda, porque nos primeiros tempos uma cobertura valia por uma casa. Assim, puppis pela “nave”, porque, sendo
elevada, será a primeira a ser divisada pelos que estão em terra; como nos
tempos bárbaros recorrentes[3] se
disse uma “vela” por uma “nave”. Assim,
mucro[4] por “espada”, porque esta palavra
abstrata, como um gênero, compreende pomo, talhe e ponta, sendo que eles
sentiram pavor foi mesmo pelas pontas... Assim, a matéria pelo todo dela
constituído, como “ferro” pela “espada”, pois não sabiam abstrair as formas da
matéria[5].
Aquele nastro de sinédoque e de metonímia:
nasceu, sem dúvida, de
uma necessidade natural, porque devem ter decorrido mais de mil anos para
surgir entre as nações este vocábulo astronômico “ano”; assim como na zona
rural florentina ainda dizem abbiamo
tante volte mietuto[7]
para significar “tantos anos”. E aquele grupo de duas sinédoques e de uma
metonímia:
Post
alíquota, mea regna videns, mirabor, artistas[8]
em muito acusa a
infelicidade dos primeiros tempos aldeões, nos quais, para expressar-se diziam
“tantas espigas”, que são particulares mais das messes, para indicar “tantos
anos”, e, porque a expressão era muito infeliz, os gramáticos ali supuseram
muito de artístico.
4.
A ironia
certamente não pode começar senão nos tempos da reflexão, porque ela forma-se a
partir do falso, em virtude de uma reflexão que assume máscara de verdade. Aqui
nasce um grande princípio de coisas humanas, que confirma a origem da poesia
aqui inventada: que os primeiros homens da gentilidade tendo sido tão
simplórios quanto as crianças, que por natureza são verazes, as primeiras
fábulas não puderam fingir nada de falso. E terão sido, necessariamente, como
acima as definimos, narrativas verdadeiras.
5.
Por todas essas razões se demonstrou que todos os tropos (que ao todo se reduzem a estes
quatro)[9],
até hoje tidos em conta de engenhosíssimo inventos dos escritores,
corresponderam a necessaríssimos modos de expressarem-se todas as primeiras
nações poéticas, guardando, em sua origem, toda a sua nativa propriedade.
Depois, no entanto, com o progressivo desenvolver-se da mente humana,
inventaram-se as palavras que significam formas abstratas, ou gêneros que
compreendiam as suas espécies, ou que compunham com suas partes as
integralidades, passando tais falares das nações primitivas a transportes. E aqui começam a
esboroar-se aqueles dois erros comuns dos gramáticos: ser próprio o falar dos
prosadores, e, improprio o dos poetas; que primeiro existiu o falar em prosa,
e, depois o do verso.
[1] Nota Flora que só então elas se converteram em
metáforas, pois, antes, nos tempos poéticos, constituíam um só corpo com a
poesia, já que não nascera ainda a abstração filosófica. (N. do T.)
[3] Isto é, a Idade Média. Recorde-se que Vico apregoa uma
reiteração cíclica dos tempos históricos. E sua teoria dos corsi e ricorsi. (N. do
T.)
[4] Ponta, extremidade pontuda.
[5] Sua continuidade.
[6] Era já tempo
da terceira ceifa. (N. do T.)
[7] Colhemos já
tantas vezes. (N. do T.)
[8] Vergílio, Bucolica,
I, 69, na forma interrogativa, diz Melibeu: Poderei ainda um dia rever meus
campos... E, ao rever aquilo que foi meu
domínio, será que não irei deparar, com doloroso espanto, apenas algumas
espigas?
[9] Metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. (N. do T.)


