domingo, 27 de outubro de 2013

CRIANÇA PETISCANDO

Na fresta do guarda-comida entreaberto penetra sua mão, como um amante através da noite. Quando então, na escuridão, ela se sente em casa, tateia em busca de açúcar ou amêndoas, de uvas passas ou frutas em conserva. E assim como o amante, antes de beijá-la, abraça sua amada, assim o tato tem com eles um encontro marcado, antes que a boca prove sua doçura. Como se entrega o mel, como se entregam os cachos de passas de Corinto, como até mesmo o arroz se entrega lisonjeiramente à mão. Que apaixonado esse encontro dos dois, que agora enfim escaparam da colher. Grata e selvagem, como uma moça que foi raptada da casa dos pais, a compota de morango se dá a saborear aqui sem pãezinhos e, por assim dizer, sob o livre céu de Deus, e até mesmo a manteiga responde com ternura à ousadia de seu conquistador, que penetrou de assalto em seu quarto de donzela. A mão, Don Juan juvenil, logo penetrou em todas as celas e aposentos, deixando para trás camadas que escorrem e massas que fluem: donzelice que se renova sem queixa.


O trecho acima é do livro Rua de Mão Única, de Walter Benjamim.

KIM TCHUN-SU

 Flor


Antes de eu pronunciar o nome
ele não era
mais que um simples gesto

Quando eu lhe pronunciei o nome
ele veio a mim
e se tornou uma flor

Assim como chamei-lhe o nome
alguém me chama o nome
que combine com o meu nariz e o meu perfume

Também quero ir até ele
e tornar-me a sua flor
Todos nós queremos ser algo
Eu para você, você para mim
Queremos ser
um inesquecível
significado

NAMGUNG BYÓK

Dor da Estrelas


Querida, minha querida, quando
o bebê revira o corpo na cama
nunca te ocorreu, involuntariamente,
levar um grande susto?

Querida, minha querida, quando
as pessoas do mundo torcem e arrancam as flores da terra,
nunca te ocorreu que as estrelas do céu se contorcem de dor?

CORÉIA: UM PAÍS QUE SE CHAMA DANÇA por paulo leminski


CORÉIA: UM PAÍS QUE SE CHAMA DANÇA


     E a devoração brasileira da poesia do planeta, via tradução, prossegue. Agora um ramo de flores, iluminado, vindo do “País da Serenidade Matutina, pelas mãos doces de Yun Jung Im, estudiosa coreano-brasileira, atualmente em Seul, de onda manda uma carta, através do irmão me convidando para participar desta bonita festa de poemas doloridos e ternos, densos e melancólicos.
     Esta antologia (antologia”, em grego, quer dizer escolha de flores) marca a chegada da poesia coreana entre nós, ampliando, no ano das Olimpíadas de Seul (encontro helênico-coreano), nosso conhecimento das artes do Extremo Oriente.
     Da China, já conhecíamos várias coisas, através das transcriações do original, por obra e graça de Haroldo de Campos ou através de traduções de Ezra Pound, entre outros.
     A poesia japonesa, através dos haikais, já é presença na poesia brasileira desde o Modernismo.
     A poesia coreana traz, a fogo, a marca do povo que a produziu, um povo sofrido de mil guerras e mil invasões, imprensado entre a China e o Japão, por eles invadido e oprimido. Nesse sentido, a condição nacional do povo coreano lembra demais a situação da Polônia na Europa, nação orgulhosa sempre espremida entre os alemães de um lado e os russos do outro.
     Como os poloneses, os coreanos tiveram muito que lutar para preservar sua personalidade nacional e seus valores culturais.
     Assim como a língua polonesa foi proibida por dominadores prusssianos e russos, a língua coreana chegou a ser proscrita pelos invasores japoneses.
     Mas, como a Polônia e o povo polonês, a Coréia e o povo coreano sobreviveram e hoje estão presentes aqui no Brasil em contingentes imigratórios significativos, entrando a fazer parte, a partir de agora, deste carnaval de raças que, um dia, vai ser o povo brasileiro.
     Na poesia coreana do século XX, objeto deste livro, me chama a atenção a finura de percepção, a delicadeza de certos registros e uma espécie de doce melancolia que impregna tudo.
     E, sobretudo, a presença de um grande poeta, a revelação do livro para mim, desde já o meu poeta coreano moderno, o boêmio e surrealista Yi Sang, com poemas experimentais surpreendentes.
     “Coreó”, o nome antigo da Coréia, significa Alta Beleza”.
   Pelo Aurélio, significa “Dança”. Feliz coincidência. E nessa dança, estamos desde já.

Paulo Leminski
(junho de 1988)