quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

ADAM FILHO DE CÃO de YORAM KANIUK

Da série "O que estou lendo agora?" ou "DOS CUIDADOS DE SI -  porque uma pessoa é o que come o seu corpo, mas também o que devora a sua alma -", quero compartilhar, como um prato forte e exótico, desses de matar a fome de algum jejum estranho, a leitura de YORAM KANIUK, Adam filho de cão; tradução de Nancy Rozenchan, SP: Ed. Globo, 2003
 
A tópica da loucura acompanha essa insana que vos fala desde muito jovem. Já não me lembro quando li O Alienista, de Machado de Assis, e aquele doutor Simão Bacamarte entrou pelos quatro contos do meu corpo. Contos mesmo, não é um erro ortográfico, senão seria uma solução. E eu não quero explicar nada. Já temos explicações demais à nossa volta. Racionalizar em tempos como os nossos, já percebeu o cinema, é perda de tempo. Não vale um nihil! Todos queremos é fantasia. A fantasia de não ser homem. A delícia sem culpa, como se permite a um deus, de ser super, hiper, mega, plus, ultra ex-man. Adam Stein é um desses. Entrou na minha vida essa semana, a última de um fevereiro chuvoso, com tempestades de vento, trovoadas e raios, muitos raios, nessa cidade com nome de santo, nem pescador, nem cristão, um perseguidor atingido. Se um raio me atingir e me der super poderes deixarei de perseguir o que quer que seja e serei o que tiver que ser. Estamos no ano de 2013, do século XXI, e não há nada mais bizarro do que ser brasileira. Mas, hoje, Adam Stein está junto comigo nessa empreitada. Eu começo a vislumbrar quem eu sou. A descrição que me fez dele o Dr Gross, discípulo de Freud, vale por uma apresentação. Vou citá-la e fim de papo por hora:
 
"Tudo o que Adam Stein faz causa-lhes espanto. Ele sabe disso e faz tudo a fim de manter a fama. Dr Gross, que agora o aguarda no gabinete, chama Adam de "gênio", e dr. Gross não usa as palavras em vão. Pois Adam Stein foi privilegiado com talentos incomuns dos quais ele absolutamente não se vangloria. Sua beleza e riqueza, por exemplo, são-lhe mais importantes. O fato de, após a guerra, Herr Kommandant ter-lhe devolvido todo o seu dinheiro e tê-lo conduzido de volta a Berlim era, a seu ver, mais significativo do que o espantodo dr. Gross, diretor do Instituto de Repouso e Terapia, sobre sua cpacidade de ler livros fechados, conversar com pessoas que se encontravam a uma grande distancia ou saber a história de objetos pelo tato.
 
Poucos anos atrás, antes da fundação do Instituto da sra. Zisling, quando o hospital ainda se localizava em Jafa, e fora trazido peloa primeira vez ao dr. Gross, Adam reparara num belo sabre árabe pendurado na parede, junto ao retrato do dr. Freud numa moldura dourada. O lindo sabre, feito de metal prateado e enfeitado de borlas coloridas, excitou-o pela aparência nobre, selvagem, que lembrava deserto, e ele estendeu a mão e começou a apalpá-lo.
 
O dr. Gross jamais esqueceria ter permanecido sentado, observando Adam cujos olhos estavam fechados e parecia perturbado pelas forças ocultas desconhecidas, invisíveis, incompreensíveis que penetravam no espaço. Adam apalpou a arma e suas mãos como que contavam a história despejando pela boca as palavras e os nomes sem parar: Uja al-Khafir, El-Arish, uma rua numa cidade branca, praia, uma mesquita com um café ao lado e subitamente um tumulto, barulho, e dois árabes brigando, e de repente Adam grita dirigindo-se ao dr. Gross: "O dono do sabre matou o homem errado!" O médico empalideceu, respirou fundo e esperou, e Adam passeou pelo Oriente e chegou a Aden, ao principado do Golfo Pérsico, a Birodjan, às montanhas prateadas, às montanhas da própria Pérsia. De repente, gritou em inglês: "O sultão está morto, viva o rei, Sua Majestade George V"! O pai do dr. Gross servira no exército turco e em 1915 alistara-se na polícia britânica, chegara ao posto de oficial e passara por todos aqueles lugares.
 
O dr. Gross sorriu prazerosamente. De repente Adam pára, range os dentes, e seus olhos passeiam em volta. O que aconteceu? Alguma coisa o bloqueava, uma palavra estava presa em sua garganta e recusava-se a sair. Era uma provação, causa-lhe sofrimento até que consegue: "Ruth. Não sei por quê, mas o nome que desejo pronunciar é Ruth"."O que aconteceu, Adam?" Arrancado dos desertos fanáticos o dr. Gross voltou ao gabinete, e o retrato do dr. Freud devolveu-lhe a frieza perene, que não compactuava com o universo primitivo dissimulado na mente dos pacientes: "O que foi que aconteceu, Adam?"
 
"Não sei", disse Adam. "Ruth era o nome da minha filha. Vim procurá-la aqui, você sabe, não? Foi a ela que eu traí. Mas este sabre é seu e o que é que tem a ver com a minha filha?" O dr. Gross não compreende. Está sedento por aquele rio forte e tempestuoso que jorra do coração de Adam e lhe transmite uma informação antiga e gloriosa. Não, aparentemente não há nenhuma relação. Quem foi Ruth? O dr. Gross rebusca o pensamento e não descobre. Mais tarde vem a saber pela mãe que o pai, antes de se casar com ela, tinha sido casado com uma inglesa, a srta. Jeanne Parker, que viera para Israel com uma delegação de arqueólogos ingleses, fizeram escavações perto de Jenin, apaixonara-se pelo jovem Gross e depois se casara com ele. Os anciões da cidade chamavam-na Ruth, em homenagem a Ruth, a moabita, e, pelas costas, irados, meneavam as cabeças dizendo: "Gross alistou-se no exército turco, passou a usar um barrete turco e casou-se com uma mulher não-judia." Ela cansou-se dos murmúrios, fugiu para Londres e, então, Gross pai casou-se com quem dera à luz o dr. Gross. O sabre, contou-lhe sua mãe com os olhos vermelhos de saudades e da ferida que nunca cicatrizara, fora presente daquela Ruth, a não-judia."

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Yoane, Cuba e Capitalismo

Grande mídia brasileira não fará nenhum questionamento a Yoani Sánchez que esteja fora dos padrões de conveniências (Foto: aBr)


40 perguntas para Yoani Sánchez em sua turnê mundial: famosa opositora cubana fará seu giro global por mais de uma dezena de países do mundo
1. Quem organiza e financia sua turnê mundial?
 
2. Em agosto de 2002, depois de se casar com o cidadão alemão chamado Karl G., abandonou Cuba, “uma imensa prisão com muros ideológicos”, para imigrar para a Suíça, uma das nações mais ricas do mundo. Contrariamente a qualquer expectativa, em 2004, decidiu voltar a Cuba, “barco furado prestes a afundar”, onde “seres das sombras, que como vampiros se alimentam de nossa alegria humana, nos introduzem o medo através do golpe, da ameaça, da chantagem”, onde “os bolsos se esvaziavam, a frustração crescia e o medo se estabelecia”. Que razões motivaram esta escolha?
 
 
3. Segundo os arquivos dos serviços diplomáticos cubanos de Berna, Suíça, e de serviços migratórios da ilha, você pediu para voltar a Cuba por dificuldades econômicas com as quais se deparou na Suíça. É verdade?
 
4. Como pôde se casar com Karl G. se já estava casada com seu atual marido Reinaldo Escobar?

 
5. Ainda é seu objetivo estabelecer um “capitalismo sui generis” em Cuba?

 

6. Você criou seu blog Geração y (Generación Y) em 2007. Em 4 de abril de 2008 conseguiu o Prêmio de Jornalismo Ortega e Gasset, de 15 mil euros, outorgado pelo jornal espanhol El País. Geralmente, este prêmio é dado a jornalistas prestigiados ou a escritores de grande carreira literária. É a primeira vez que uma pessoa com seu perfil o recebe. Você foi selecionada entre cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time (2008). Seu blog foi incluído na lista dos 25 melhores blogs do mundo pela cadeia CNN e pela revista Time (2008), e também conquistou o prêmio espanhol Bitacoras.com, assim como The Bob’s (2008). El País lhe incluiu em sua lista das cem personalidades hispano-americanas mais influentes do ano 2008. A revista Foreign Policy ainda a incluiu entre os dez intelectuais mais importantes do ano em dezembro de 2008. A revista mexicana Gato Pardo fez o mesmo em 2008. A prestigiosa universidade norte-americana de Columbia lhe concedeu o prêmio María Moors Cabot. Como você explica esta avalanche de prêmios, acompanhados de importantes quantias financeiras, em apenas um ano de existência?
 
7. Em que emprega os 250 mil euros conseguidos graças a estas recompensas, um valor equivalente a mais de 20 anos de salário mínimo em um país como França, quinta potencia mundial, e a 1.488 anos de salário mínimo em Cuba?
 
8. A Sociedade Interamericana de Imprensa, que agrupa os grandes conglomerados midiáticos privados do continente, decidiu nomeá-la vice-presidente regional por Cuba de sua Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação. Qual é seu salário mensal por este cargo?
 

9. Você também é correspondente do jornal espanhol El País. Qual é sua remuneração mensal?
10. Quantas entradas de cinema, de teatro, quantos livros, meses de aluguel ou pizzas pode pagar em Cuba com sua renda mensal?
11. Como pode pretender representar os cubanos enquanto possui um nível de vida que nenhuma pessoa na ilha pode se permitir levar?
12. O que faz para se conectar à Internet se afirma que os cubanos não têm acesso e ela?
13. Como é possível que seu blog possa usar Paypal, sistema de pagamento online que nenhum cubano que vive em Cuba pode utilizar por conta das sanções econômicas que proíbem, entre outros, o comércio eletrônico?
14. Como pôde dispor de um Copyright para seu blog “© 2009 Generación Y – All Rights Reserved”, enquanto nenhum outro blogueiro cubano pode fazer o mesmo por causa das leis do embargo?
15. Quem se esconde atrás de seu site desdecuba.net, cujo servidor está hospedado na Alemanha pela empresa Cronos AG Regensburg, registrado sob o nome de Josef Biechele, que hospeda também sites de extrema direita?
16. Como pôde fazer seu registro de domínio por meio da empresa norte-americana GoDady, já que isto está formalmente proibido pela legislação sobre as sanções econômicas?
17. Seu blog está disponível em pelo menos 18 idiomas (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, português, russo, esloveno, polaco, chinês, japonês, lituano, checo, búlgaro, holandês, finlandês, húngaro, coreano e grego). Nenhum outro site do mundo, inclusive das mais importantes instituições internacionais, como por exemplo as Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a OCDE ou a União Europeia, dispõem de tantas versões linguísticas. Nem o site do Departamento de Estado dos Estados Unidos, nem o da CIA dispõem de igual variedade. Quem financia as traduções?
18. Como é possível que o site que hospeda seu blog disponha de uma banda com capacidade 60 vezes superior àquela que Cuba dispõe para todos os usuários de Internet?
19. Quem paga a gestão do fluxo de mais de 14 milhões de visitas mensais?
20. Você possui mais de 400 mil seguidores em sua conta no Twitter. Apenas uma centena deles reside em Cuba. Você segue mais de 80 mil pessoas. Você afirma “Twitto por sms sem acesso à web”. Como pode seguir mais de 80 mil pessoas sem ter acesso à internet?

21. O site www.followerwonk.com permite analisar o perfil dos seguidores de qualquer membro da rede social Twitter. Revela a partir de 2010 uma impressionante atividade de sua conta. A partir de junho de 2010, você se inscreveu em mais de 200 contas diferentes do Twitter a cada dia, com picos que podiam alcançar 700 contas em 24 horas. Como pôde realizar tal proeza?

22. Por que cerca de seus 50 mil seguidores são na verdade contas fantasmas ou inativas? (ver aqui) De fato, dos mais de 400 mil perfis da conta @yoanisanchez, 27.012 são ovos (sem foto) e 20 mil têm características de contas fantasmas com uma atividade inexistente na rede (de zero a três mensagens mandadas desde a criação da conta).

23. Como é possível que muitas contas do Twitter não tenham nenhum seguidor, apenas seguem você e tenham emitido mais de duas mil mensagens? Por acaso seria para criar uma popularidade fictícia? Quem financiou a criação de contas fictícias?
24. Em 2011, você publicou 400 mensagens por mês. O preço de uma mensagem em Cuba é de 1,25 dólares. Você gastou seis mil dólares por ano com o uso do Twitter. Quem paga por isso?
25. Como é possível que o presidente Obama tenha lhe concedido uma entrevista, enquanto recebe centenas de pedidos dos mais importantes meios de comunicação do mundo?
26. Você afirmou publicamente que enviou ao presidente Raúl Castro um pedido de entrevista depois das respostas de Barack Obama. No entanto, um documento oficial do chefe da diplomacia norte-americana em Cuba, Jonathan D. Farrar, afirma que você nunca escreveu a Raúl Castro: “Ela não esperava uma resposta dele, pois confessou nunca tê-las enviado [as perguntas] ao presidente cubano. Por que mentiu?

27. Por que você, tão expressiva em seu blog, oculta seus encontros com diplomáticos norte-americanos em Havana?

28. Entre 16 e 22 de setembro de 2010, você se reuniu secretamente em seu apartamento com a subsecretaria de Estado norte-americana Bisa Williams durante sua visita a Cuba, como revelam os documentos do Wikileaks. Por que manteve um manto de silêncio sobre este encontro? De que falaram?

29. Michael Parmly, antigo chefe da diplomacia norte-americana em Havana afirma que se reunia regularmente com você em sua casa, como indicam documentos confidenciais da SINA. Em uma entrevista, ele compartilhou sua preocupação em relação à publicação dos cabos diplomáticos norte-americanos pelo Wikileaks: “Eu me incomodaria muito se as numerosas conversas que tive com Yoani Sánchez forem publicadas. Ela poderia sofrer as consequências por toda a vida”. A pergunta que imediatamente vem à mente é a seguinte: quais são as razões por que você teria problemas com a justiça cubana se sua atuação, conforme afirma, respeita o marco da legalidade?

30. Continua pensando que “muitos escritores latino-americanos mereciam o Prêmio Nobel de Literatura mais que Gabriel García Márquez”?

31. Continua pensando que “havia uma liberdade de imprensa plural e aberta, programas de rádio de toda tendência política” sob a ditadura de Fulgencio Batista entre 1952 e 1958?

32. Você declarou em 2010: “o bloqueio tem sido o argumento perfeito do governo cubano para manter a intolerância, o controle e a repressão interna. Se amanhã as suspenderem as sanções, duvido muito que sejam vistos os efeito”. Continua convencida de que as sanções econômicas não têm nenhum efeito na população cubana?
33. Condena a imposição de sanções econômicas dos Estados Unidos contra Cuba?
34. Condena a política dos Estados Unidos que busca uma mudança de regime em Cuba em nome da democracia, enquanto apoio as piores ditaduras do Oriente Médio?
35. Está a favor da extradição de Luis Posada Carriles, exilado cubano e ex-agente da CIA, responsável por mais de uma centena de assassinatos, que reconheceu publicamente seus crimes e que vive livremente em Miami graças à proteção de Washington?
36. Está a favor da devolução da base naval de Guantánamo que os Estados Unidos ocupam?
37. Você é favorável à libertação dos cinco presos políticos cubanos presos nos Estados Unidos desde 1998 por se infiltrarem em organizações terroristas do exílio cubano na Florida?
38. Em sua opinião, é normal que os Estados Unidos financiem uma oposição interna em Cuba para conseguir “uma mudança de regime”?

39. Em sua avaliação, quais são as conquistas da Revolução Cubana?

40. Quais interesses se escondem atrás de sua pessoa?


 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

AMOR E MORTE - De Catulo a John Donne


AULA INAUGURAL 2013
REDAÇÃO / Professora LUCIANA
 
            Meus caros alunos,
 
Com muito entusiasmo inauguro o curso de Redação 2013 do Liceu de Artes e Ofício de São Paulo propondo-lhes uma reflexão em torno de duas tópicas - temas recorrentes na arte de todos os tempos: o amor e a morte.
A morte, esse assunto pouco usual para o começo de um ano letivo, está aqui em razão dos acontecimentos recentes que chocaram toda a população do Brasil, em Santa Maria, RS. Diante da dor do outro temos que nos colocar sempre. Mas que cada notícia dada, cada reflexão feita sobre essa dor seja para solidarizar primeiro e transformar logo em seguida. De nada adianta a noticia sobre uma tragédia que não traga em si o germe para a mudança e a prevenção. Ao longo do ano, em nosso curso sobre a prática da leitura e da escrita, gradativamente vamos preparar vocês para que sejam capazes de se posicionar diante do que for, no dia a dia, como pessoa consciente e atuante do seu papel cidadão, sabendo ler, compreender e intervir por meio da palavra, essa poderosa arma.
A outra tópica, sobre o amor, é necessária pelas razões óbvias. Bem pouco na vida se faz sem ele. É o melhor remédio contra a dor, principalmente a da morte. É o nosso combustível diário, a força que move o nosso desejo e alimenta a nossa vontade. E é sempre muito estimulante, e catalizador de potencialidades, iniciar qualquer coisa que seja em nome dele, do amor.
Posto isso, vamos aos textos e seus autores:
 


 I. John Donne é um dos maiores poetas de língua inglesa que conheço. Incompreendido na sua época, o século XVII, foi esquecido por muito tempo, mas é hoje reverenciado e lido em todo o mundo. Sua obra serviu de inspiração para muitos outros poetas além da sua época. Foi a partir do texto de John Donne, selecionado abaixo, que o escritor norte-americano Ernest Hemingway encontrou inspiração para o título do seu romance “Por Quem os Sinos Dobram”. Também a FUVEST já explorou no seu vestibular o mote, destacado do texto de Donne, “Nenhum homem é uma ilha”.


POR QUEM OS SINOS DOBRAM?
Nunc lento sonitu dicunt, morieri (*)
“Talvez aquele para quem estes sinos dobram esteja tão mal que ele sequer sabe que dobram por ele. E talvez eu possa me achar muito melhor do que sou, como fazem aqueles que me rodeiam, e ao ver o meu estado podem tê-lo feito dobrar por mim, e eu nem saiba disso. (...) E quando a Igreja enterra um homem, esta ação também me diz respeito; toda a humanidade provém de um autor, e forma um único livro; quando um homem morre, um capítulo não é arrancado do livro mas traduzido para uma linguagem melhor, e cada capítulo deve ser assim traduzido; Deus emprega inúmeros tradutores; algumas peças são traduzidas pela idade, algumas pela doença, algumas pela guerra, algumas pela justiça, mas a mão de Deus está em cada tradução, e sua mão reunirá outra vez todas as nossas folhas espalhadas formando a biblioteca onde cada livro deverá permanecer aberto aos outros, da mesma maneira que, quando o sino toca chamando para o sermão, não chama apenas o pregador, mas também toda a congregação; nos chama a todos, e ainda mais a mim, a quem a doença pôs às portas da morte.
Houve uma disputa e mesmo um processo (onde se misturaram piedade e dignidade, religião e opinião) sobre qual ordem religiosa deveria tocar primeiro chamando para as orações no início da manhã, e foi determinado que tocaria primeiro aquela que acordou mais cedo. Se entendermos bem a dignidade deste sino, dessas badaladas para a nossa oração da noite, ficaríamos felizes tornando-as nossas, madrugando, nessa aplicação, que poderia ser nossa e também sua, como de fato é. O sino toca por ele, e pelas coisas que fez; e embora intermitente, ainda nesse minuto, como no momento em que tocou sobre ele, ele já está unido a Deus. Quem não levanta seu olhar para o sol quando ele nasce? Quem tira o olho de um cometa quando irrompe no céu? Quem não presta ouvidos ao badalar de um sino, qualquer que seja o motivo dessas badaladas? Mas quem de nós pode distraí-los daquele sino no momento em que um pedaço de nós mesmos está passando para fora deste mundo?
Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido a morada de um amigo teu, ou a tua própria morada. A morte de qualquer homem me deixa diminuído, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”                 
(Tradução de José Carlos Ruy)              
Nota do tradutor: (*) Os sinos tocam suavemente por alguém. E me dizem: você também vai morrer
 
 
II.

Catulo, poeta romano que viveu entre os anos de 84 e 54 antes de Cristo, apresenta uma obra poética marcada pela sofisticação e irreverência. Dono de uma sintaxe chamada de incomum, utilizava frases cortadas, repetições e versos ligeiros; utilizava, ainda no âmbito da linguagem, expressões e palavras coloquiais. Sua tradição literária está ligada aos poetas alexandrinos, em que relatava, nesse tipo de versos, seus sentimentos pessoais. Com uma poesia de amor elegante e sincera, ele foi o iniciador da lírica erótica em Roma. Sua obra é composta, ainda, de mais de cem poemas, em que uma grande parte foi dedicada à paixão que sentia por Lésbia, mulher a quem seu coração pertencia.

 

 

 

 

 

CATULO (85 a.C. – 54 a.C.),Vivamos, minha Lésbia, e amemos”

 

“Vivamos, minha Lésbia, e amemos

e as graves vozes velhas

- todas –

valham para nós menos que um vintém.

Os sóis podem morrer e renascer;

Mas nós, quando se apaga nosso fogo breve

dormimos uma noite infinita.

Dá-me pois mil beijos, e mais cem,

e mil, e cem, e mil, e mil e cem.

Quando somarmos muitas vezes mil

misturaremos tudo até perder a conta:

que a inveja não ponha o olho de agouro

no assombro de uma tal soma de beijos.”

(Tradução de Haroldo de Campos)